A relação entre poesia e artes plásticas mereceu desde há muito a atenção daqueles que se interessam pelas questões estéticas. Em meados do século XVIII, Lessing escreveu uma obra que, focando este problema, se tornou uma referência. Essa obra célebre intitula-se Laocoonte e nela se estabelece a diferença entre as artes plásticas e a poesia, baseando-se na distinção que existe entre o espaço e o tempo, entre o corpo e as acções, entre os signos arbitrários da linguagem e os signos naturais da pintura. A poesia é, pois, uma arte temporal segundo este ponto de vista.
No entanto, o fascínio pelo espaço ou, melhor, pelos lugares esteve sempre presente nos poetas. Por isso não nos deve espantar que um poeta dos nossos dias, José Manuel Teixeira da Silva, se refira num seu recente livro intitulado Música de Anónimo aos "extremos lugares". Este livro pode ser entendido, efectivamente, como um percurso por esses lugares extremos que podem ser uma casa onde se encontre "a primitiva luz", um espaço de leitura onde "todos os livros se esquecem", um quadro onde "o mundo é primeiro esboço do mundo", um muro que é "uma cegueira inspirada pela luz".
Dentro deste contexto leia-se o início do poema deste livro que se intitula "O Quarto dos Brinquedos": "Os meninos seguem na ventania dos quartos / não sabem apenas brincar, como lhes pedem / Onde estamos, ao acordar de coração no breu / que tempo, que vida, que caminho para a mãe? // De onde vem a luz que arromba as portas? / Como abrem para o escuro? O que fica no vazio?"
Sabemos, pela nota biográfica do autor, que Teixeira da Silva "escreve poesia, alguma prosa, faz fotografia". O desenvolvimento dos seus poemas decorre de flashes sucessivos, sobrepostos, os quais não raro correspondem a fragmentos verbais que se diria serem fotografias ou, melhor, cortes de fotografias que põem em questão o que de imitativo pode haver numa representação fotográfica. Daí o modo como- e lembremos que Lessing desenvolveu o seu ponto de vista pondo em questão o princípio da imitação que faria da poesia uma "pintura falada"- vários poemas deste livro aludem a quadros, com explícita referência a Turner, Vermeer ou Pousão, e a composições musicais de Mozart, Mahler ou Messiaen.
Mas, para além das referências musicais ou pictóricas, o que prevalece é uma invenção que será, obviamente, a da própria linguagem. É isto o que se pode ver neste passo do poema "Catálogo de Pássaros de O. Messiaen": "Exactamente setenta e sete pássaros diferentes / repartidos por sete livros de música / Não chega só uma vida para contar a plumagem / as películas esvoaçantes do breu real / ou os saltos coloridos de espessuras entre galhos / Volteiam de transparência em transparência / trespassam o dia, bicam o nó da sombra".
Fernando Guimarães, in Crónica de Poesia , "O lugar e o ser", Jornal de Letras, Artes e Ideias, nº 1160, 18/3/2015
NOTAS PARA UMA APRESENTAÇÃO DE MÚSICA DE ANÓNIMO
A poesia de José Manuel Teixeira da Silva associa-se por vezes a alguma circunstância de vida, não desembocando todavia em excurso biográfico, para além de se confrontar com outras artes, em particular a música, a fotografia e a pintura. É uma poesia que sabe da emancipação da contingência (Lindeza Diogo): não só a vida pode conter matéria para reflexão poética como a tradição das artes é manancial à disposição, potenciador de exercícios ecfrásticos pautados pela errância. Música de anónimo põe especial cuidado na música dos seus versos – seria fastidioso enumerar as aliterações, as assonâncias, as repetições anafóricas ou os assíndetos. Ainda a propósito de retórica, na primeira parte da obra a linguagem é mais elíptica. Revelo que a minha primeira intuição foi apor o título desta obra a Música de câmara de James Joyce – donde divisaria o recurso ao clássico topos da falsa modéstia – antes de saber da relação intertextual com a composição anónima interpretada ao cravo por Ana Mafalda Castro. Enfim, efabulações minhas... A poesia de José Manuel Teixeira da Silva testemunha a sua passagem pelo mundo e diz por sobre isso do mundo que passa – e sem declarada intenção mimética. Já noutro lugar tive a oportunidade de assinalar que a lição de Sophia de Mello Breyner segundo a qual o poeta é um escutador se aplica com veemência à sua poesia. Leio tal revisão de Fernando Pessoa como aproximativa do poeta ao animal, ambos em permanente alerta, inquietos, partilhando uma aturada (e aturdida) atenção, comuns ao caçador, ao coleccionador e à sentinela – que pressente aquilo que é forte (Gonçalo M. Tavares). E sem querer abusar da vossa paciência, porque de resto a teoria chega sempre atrasada (Miguel Tamen), destacaria ainda que rastrear a perda como José Manuel Teixeira da Silva o faz, sobretudo na primeira parte da obra, parece dar razão a teóricos como Omar Calabrese, para quem vivemos uma época «neobarroca».
Depois de sobrevoar a obra do poeta, debruço-me sobre Música de anónimo. Para tanto, defini três pontos coincidentes com as partes do livro.
1.a tudo quanto o dia acenderá
A primeira parte da obra é dominada por algumas isotopias: luz, sombra, mar, verão. A imagem do mar persiste e domina ao longo de toda a obra aliás – o mar compele e inquieta. Tanto o mar como a garota de Ipanema são presenças inelutáveis, embora a garota seja de outra natureza, porquanto passe. Mais até do que olhar o mar ou a garota, o poeta é por eles olhado, tais imagens executam uma incisão, abrindo um espaço para além do visível. Contudo, perseguimos paradoxalmente o que nos segue, como dizem os belíssimos versos do poema «Passos perdidos». De alguma maneira, como afirma o historiador de arte Georges Didi-Huberman em O que vemos, o que nos olha, «ver é sentir que algo nos escapa inelutavelmente», quer dizer, «ver é perder». Olhar para as coisas até que elas se afastem, perdendo-se. Nesse afastamento das imagens averbam-se duas outras perdas: a do tempo – e, mais funda ainda, a perda de si mesmo. Portanto, escreve-se no limiar do fim.
Não satisfaz declarar que o que vemos é apenas a casa ou o mais extenso mar, como sucede no poema «Dar nas vistas», uma vez que o ser humano é animal de sentido. A casa é a casa, o mar é o mar: o consolo da tautologia, para além de nada explicativo, recusa o repto das imagens. Contrasta-se na primeira parte da obra a transitoriedade da beleza da garota com a incandescência pouco humana do mar. «Em chamas», acrescenta um verso do primeiro poema. Este mar de chamas diz por um lado da canícula que se pode experienciar na praia e, por outro, do inferno vivido para lá dela e todavia sentido por quem nela está. Em todo o caso, fala-se de um vapor de estio tão excessivo que aproxima da morte, prosseguindo-se até à aparição da noite como fundo negro para a luz infernal das chamas. Esta incandescência transladar-se-á no segundo poema para o silêncio, uma outra luz por sobre os banhos de sol. Só luz e silêncio e alegria, breve como toda (Vergílio Ferreira), pela repetição de uma estação após outra. «Somos crianças feitas para grandes férias», digo, rememorando Ruy Belo. Pela luz, pelo silêncio e pela alegria o elementar desejo funciona, porém sob ameaça das sombras, da despedida do verão, do tempo que ainda não passou, da antecipação do fim, no que convoco novamente Ruy Belo e a sua demanda pela autêntica estação, consequente do melancólico desajuste. No corpo tatua-se esta passagem do tempo e apesar há dias em que se anda nas nuvens, entusiasmado por dentro do tempo inesgotável. Na ardência dos «extremos lugares» reencontra-se os passos perdidos da garota, desta ou doutra fantasia, porque tudo são «regressos, partidas», imagens que fluem e refluem como o mar. Após a partida das imagens, somos olhados pela perda, pelo vazio que fica, da qual recobramos diferentes quando regressa essa garota, esse verão, esse mar, essa luz, também já eles diferentes. Os regressos e as partidas ensinam-nos a alteridade, pois, essa obsidiante presença do que falha, os jazentes cacos da loiça, as gavetas empenadas, a quietação das águas. Em contraste com esta suspensão temporal, revoam folhas de outro tempo que já não sabemos e desfazem-se as nuvens, claro, só faltavam as nuvens, que visitam amiúde os poemas de José Manuel Teixeira da Silva. Folhas e nuvens passam – como nós passamos, retocando as pegadas no jardim, cortando a relva, limpando alguns caminhos. No poema de Baudelaire de Spleen de Paris, o viajante despreza o mundano e o seu ouro, ignora a família e a pátria – e diz amar somente as nuvens. Somos sujeitos passentos por condição – passamos tempo (e retenho do verbo passar a associação com pathos, sofrimento, autorizada pela etimologia). Passar tempo não consiste contudo nos inanes passatempos, negação inglória da nossa mortalidade. E embora não saibamos o que queiram dizer as palavras aparecer, desaparecer e deslumbrar, saberemos pelo menos que todas as palavras deslumbram, e fazem aparecer e desaparecer.
2.vozes conjugadas na distância
E apesar de tudo, somente as palavras permitem pensar a distância em relação ao mundo e ao outro. A segunda parte de Música de anónimo parece render homenagem às pessoas que o poeta conhece ou conheceu. Encetar um diálogo é de alguma maneira olhar o outro; a leitura – esta, por exemplo – não é outra coisa senão fazer observações. Dialogar e ler são ainda travessias – do olhar, do rosto, das mãos. Mas escrever também, como finalmente veremos na parte final da obra. Centro a minha atenção nos versos do soneto «O quarto dos brinquedos»:
Os meninos seguem na ventania dos quartos
não sabem apenas brincar, como lhes pedem
Onde estamos, ao acordar de coração no breu
que tempo, que vida, que caminho para a mãe?
Uma injunção a que, constato, nenhum menino corresponde – «apenas brincar». Os pais gostariam que eles apenas brincassem, mas momentos de auto-absorção são raros nas crianças. Ao contrário, os meninos seguem, descobrem aos poucos que o caminho para a mãe, para o breu, para a noite da continuidade, não existe. Ou melhor, existirão sempre substitutos do corpo da mãe, de que o soneto dará conta. Imagens, objectos e hipóteses de sentido (Jacques Lacan) – é tudo quanto substituirá o corpo da mãe. Gostariam os pais que eles brincassem, concedendo-lhes o desafogo para, por exemplo, escrever poemas ou esquecer livros. Todavia as crianças são de uma ingénua intransigência quando nos levam para o seu mundo, escrevendo o plot maravilhoso dos dias. Pergunto-me apenas se o poeta não fará o mesmo: no seu quarto, no seu escritório, escrevendo rodeado por todos os livros que colecciona como a criança arrebanha brinquedos, arromba-nos as portas para respirarmos mais fundo.
A pretexto de um livro de Virginia Woolf esquecido numa praia, avançar-se-á por metalepse para uma reflexão sobre todas as leituras que esquecemos. O que sobra na memória das nossas leituras ao fim de algum tempo? E nos nossos gestos, então? Alijamos essa carga algures, soterrada por um dia e outro, tempo sobre tempo ao lado de corpos também eles desabados. Neste ponto parece-me que o livro se debruça sobre o exercício lacunar e elíptico da memória. Cito a segunda estrofe do poema «Sem título»:
Como chamar
o irradiante esquecimento
sem nos afeiçoarmos
a precisas, minuciosas traições
diligente ignorância?
Com que palavras falar do passado, dos amores passados em particular, sobretudo quando a nossa diligente ignorância tratou de o turvar? A nossa memória é pouco fidedigna, assim como o é a mais completa biografia. Acreditamos poder contar a nossa vida – e até a de outros – de uma forma mais ou menos precisa, mas quando decidimos fazê-lo apercebemo-nos de que ela está povoada de zonas de sombra e que foi feita de caminhos não percorridos. O que somos resulta da soma imprecisa do que vivemos mais o que não vivemos. Mas existe uma porta de saída para este impasse: a imaginação, ou, nos termos do mesmo poema, «o empenho das imagens». É disso que trata o terceiro ponto.
3.coisas de atenta surdez
Considero esta «atenta surdez» também a do poeta, e não apenas a de Messiaen. Parece-me uma fórmula justa para dizer da tenacidade que contraria a limitação humana. Como até deus é um problema gramatical (Nietzsche), nada transcende a linguagem, somente interpretamos (como podemos). Do ponto de vista didáctico, nada seria mais estimulante, embora seja difícil contrariar o secular respaldo essencialista. Nos descaminhos da retórica, toda a interpretação tem o seu quê de efabulada. Parece que se concretizou a cultura mundial idealizada por T. S. Eliot em Notas para uma definição da cultura. É a partir desse fundo de latência (disponibilizado em bibliotecas, livrarias, museus, internet, enciclopédias...) que o poeta cria o seu privado museu imaginário (Malraux). Caminha por ele e convida-nos a entrar, não sendo raro que o leitor se transvie nesta sucessão de links, de informação biográfica dos artistas ou de notação estética, tudo cerzido pela imaginação. Lidamos pois com a potência arquivística da nossa era, associada a uma surdez por demais atenta do poeta. O poema converte-se em transdutor de todas as artes. Interpretamos Mahler como interpretamos a loiça jazente, o mundo é concatenação de signos. Diviso nestes poemas finais o recurso à hipotipose, isto é, a sucessivas enumerações enérgicas – uma reacção possível à indizibilidade (Umberto Eco). Lembre-se que na segunda parte do livro a indizibilidade se suspendia em interrogação. Em suma: os poemas da última parte são respostas, influenciadas pela cultura e pela imaginação do poeta, a experiências estéticas. Constituem, de alguma maneira, investigações em verso sobre obras de arte. Nem ver nem ouvir são actividades puramente orgânicas, claro está, e por isso são inquietas. Em consequência, a vida transforma-se numa obra crítica. Tanto da música de Schubert como do resto, constata-se no último poema, «pouco sabemos», o que profliga todo o assomo de optimismo hermenêutico. Em consequência, é tarefa nossa, diz o poema «Os Cadernos de esboços de J. W. Turner», recomeçar o mundo a cada vez.
Pedro Meneses, apresentação na Casa-Museu Teixeira Lopes, em 11 de Abril de 2015
(também em Crueza Bruta)
O QUE DA VIDA NOS OLHA NO OLHAR
José Manuel Teixeira da Silva traça no seu blogue, criado em 2009, o próprio perfil: nasceu no Porto, em Dezembro de 1959; vive em Vila Nova de Gaia, onde é professor; escreve poesia e alguma prosa; faz fotografia. Não é propriamente um curriculum vitae, sendo que o universo da fotografia subsume o todo. Agora, depois de Súbito a Mão (FLUP, 1983); As Súbitas Permanências (Quasi Edições, 2001); Anima, com ilustrações de Ana Abreu (Língua Morta, 2011), O Lugar que Muda o Lugar (Língua Morta, 2013), e Ver. 59 anotações fotográficas (Ed. Autor, 2012), publica Música de Anónimo na açoriana Companhia das Ilhas. Neste novo livro, estranha-se o título, apesar de traduzir – estranhamente - o que nele se passa, isto é, o devir alheio de um ponto focado intensivamente numa imagem ou num quadro montado a partir dele pelo poeta. Prisma tornado linha de mira da cena. Punctum fulminante que adquire um tónus de eternidade.
Pequeno livro, três partes, cada uma encabeçada por uma epígrafe que sumariza o conjunto de poemas aí aglutinados: “a beleza que não é só minha/ que também passa sozinha”, de Vinicius de Moraes; “numa pura suspensão de/ cristais revelo a minha vida”, de Carlos de Oliveira; “Aqui estão flores mudas e vozes apagadas/ ambas vivendo de novo o reencontro”, de Fiama Hasse Pais Brandão. Sublinhem-se, respectivamente, a “beleza” que se impessoaliza, a ideia de “suspensão” e o “reencontro”, visto como reacendimento: temos assim a chave de leitura dos poemas de Música de Anónimo.
Paralelamente, os dispositivos mentais da fotografia, de configurar o campo e de capturar poeticamente uma imagem, marcam esta poesia, assim como a sobreposição e a sucessão de imagens de grande visualidade. Se há um sentido literalmente dominante, será o da visão; se há um instrumento reforçado, será o dos olhos — são consecutivas aparições, textualmente transpostas ao longo de todo o livro. São os olhos que mergulham no mundo, sacando dele um ponto, marcando na hora um tempo único, fulminante, um ponto de partida, que, todavia, ao ser relançado, introduz a sensação de salto para a permanência, de contínuo - a dimensão de tempo e do movimento. Ao levantar-se a cabeça para a extensão do mundo, delineia-se um espaço visual, pictórico. Luz, luminosidade, sombra, olhar - os olhos que olham e que fixam no texto, engendrando espaço - são os alicerces destes poemas. As suas peças: as praias, o fogo, o mar, as ondas, o anoitecer.
Ao primeiro poema, um crepúsculo, um mar de chamas: “os incêndios cercam as praias/ brilhos e olhos mergulhados no mundo// Não sabemos como respirar/ se nadas entre cinzas/ e encandeias os limites do dia// É apenas um mar de chamas/ dizes, enquanto descansas/ nos braços do ar// Ardem nuvens e nuvens e palavras/ na consumida aparição da noite.” A luz e o fogo incendeiam o ar, acendem a vibração poética: ardem nuvens (e nuvens) e ardem palavras. Esta repetição estende a imagem e o verso, num processo recorrente: “de estrela em estrela”; nuvens de nuvens, outras nuvens”; “sombra de sombras de sombras”; “lágrimas que destilam as lágrimas”; “silêncio tombando sobre silencioso silêncio”; “a luz ilumina toda a/ luz, luminosamente”.
Há focagens e desfocagens. Efeitos de movimento. Deformações, reformulações. Este processo cria em simultâneo a expansão (cenário, espaço, horizontalidade) e o aprofundamento (intensidade, tempo, verticalidade) -“um dia inteiro sustenta os olhos/ afunda as figuras que adivinhas/ tanto persistem, sempre mais remotas”-, materializados até na quase ausência de pontuação e no ficar em aberto do verso e/ou do poema.
Olha-se o mundo que nos olha e por esse olhar do mundo fica-se cativado. Fica o poeta suspenso: o seu estado de alma é o da passagem, o viajar da própria viagem, avançando até encontrar um interlocutor, um lugar. Evola-se uma efabulação poética, uma quase narrativa, um ethos particular a partir, por exemplo, da Rapariga do Brinco de Pérola de Vermeer, da sombra de Alma na cabana junto ao lago de Gustav Mahler. O escritor cruza campos artísticos distintos na origem e nos media: da pintura, criam-se pontos de fuga a partir de detalhes em esboços de Turner (“também nos inspira/ a sonâmbula pesca à linha/ quase esquecendo as trutas viscosas”) e de fotografias mais ou menos conhecidas de grandes fotógrafos (de Josef Sudek a Walker Evans). A música, a mais imaterial e mais abstracta das artes, é repetidas vezes convocada como modus operandi ideal caminhando para a invisibilidade, o insubstancial - por exemplo em Música de anónimo do século XVII (cravo de 1758): “Recebe a música de cada vez anónima/ nos dedos que fogem e duram fulminantes/ ou descansam de leve no instrumento etéreo/ que chegou de um século seguinte// A vastidão do dia afina-se no embalo das vidas/ são correntes de um ar que nos transporta/ repercutido silêncio exposto/ mas só agora plenamente alheio”. Também a música é mote ou pretexto para um dos mais belos poemas do livro: Catálogo de Pássaros de O. Messiaen.
Apesar de pouco mediático, José Manuel Teixeira da Silva é um dos poetas mais interessantes da nossa contemporaneidade. Possui um estilo singular, reconhecível; manuseia a língua e as diversas figuras com destreza e elegância até no extremo; transfigura a construção sintáctica mais comum, aproxima elementos antitéticos. Um poeta simultaneamente da atenção (minuciosa) e da imaginação (fulgurante) que urge ser lido.
Maria da Conceição Caleiro, in Ípsilon/Público, 7 de Agosto de 2015
(aqui)
No entanto, o fascínio pelo espaço ou, melhor, pelos lugares esteve sempre presente nos poetas. Por isso não nos deve espantar que um poeta dos nossos dias, José Manuel Teixeira da Silva, se refira num seu recente livro intitulado Música de Anónimo aos "extremos lugares". Este livro pode ser entendido, efectivamente, como um percurso por esses lugares extremos que podem ser uma casa onde se encontre "a primitiva luz", um espaço de leitura onde "todos os livros se esquecem", um quadro onde "o mundo é primeiro esboço do mundo", um muro que é "uma cegueira inspirada pela luz".
Dentro deste contexto leia-se o início do poema deste livro que se intitula "O Quarto dos Brinquedos": "Os meninos seguem na ventania dos quartos / não sabem apenas brincar, como lhes pedem / Onde estamos, ao acordar de coração no breu / que tempo, que vida, que caminho para a mãe? // De onde vem a luz que arromba as portas? / Como abrem para o escuro? O que fica no vazio?"
Sabemos, pela nota biográfica do autor, que Teixeira da Silva "escreve poesia, alguma prosa, faz fotografia". O desenvolvimento dos seus poemas decorre de flashes sucessivos, sobrepostos, os quais não raro correspondem a fragmentos verbais que se diria serem fotografias ou, melhor, cortes de fotografias que põem em questão o que de imitativo pode haver numa representação fotográfica. Daí o modo como- e lembremos que Lessing desenvolveu o seu ponto de vista pondo em questão o princípio da imitação que faria da poesia uma "pintura falada"- vários poemas deste livro aludem a quadros, com explícita referência a Turner, Vermeer ou Pousão, e a composições musicais de Mozart, Mahler ou Messiaen.
Mas, para além das referências musicais ou pictóricas, o que prevalece é uma invenção que será, obviamente, a da própria linguagem. É isto o que se pode ver neste passo do poema "Catálogo de Pássaros de O. Messiaen": "Exactamente setenta e sete pássaros diferentes / repartidos por sete livros de música / Não chega só uma vida para contar a plumagem / as películas esvoaçantes do breu real / ou os saltos coloridos de espessuras entre galhos / Volteiam de transparência em transparência / trespassam o dia, bicam o nó da sombra".
Fernando Guimarães, in Crónica de Poesia , "O lugar e o ser", Jornal de Letras, Artes e Ideias, nº 1160, 18/3/2015
NOTAS PARA UMA APRESENTAÇÃO DE MÚSICA DE ANÓNIMO
A poesia de José Manuel Teixeira da Silva associa-se por vezes a alguma circunstância de vida, não desembocando todavia em excurso biográfico, para além de se confrontar com outras artes, em particular a música, a fotografia e a pintura. É uma poesia que sabe da emancipação da contingência (Lindeza Diogo): não só a vida pode conter matéria para reflexão poética como a tradição das artes é manancial à disposição, potenciador de exercícios ecfrásticos pautados pela errância. Música de anónimo põe especial cuidado na música dos seus versos – seria fastidioso enumerar as aliterações, as assonâncias, as repetições anafóricas ou os assíndetos. Ainda a propósito de retórica, na primeira parte da obra a linguagem é mais elíptica. Revelo que a minha primeira intuição foi apor o título desta obra a Música de câmara de James Joyce – donde divisaria o recurso ao clássico topos da falsa modéstia – antes de saber da relação intertextual com a composição anónima interpretada ao cravo por Ana Mafalda Castro. Enfim, efabulações minhas... A poesia de José Manuel Teixeira da Silva testemunha a sua passagem pelo mundo e diz por sobre isso do mundo que passa – e sem declarada intenção mimética. Já noutro lugar tive a oportunidade de assinalar que a lição de Sophia de Mello Breyner segundo a qual o poeta é um escutador se aplica com veemência à sua poesia. Leio tal revisão de Fernando Pessoa como aproximativa do poeta ao animal, ambos em permanente alerta, inquietos, partilhando uma aturada (e aturdida) atenção, comuns ao caçador, ao coleccionador e à sentinela – que pressente aquilo que é forte (Gonçalo M. Tavares). E sem querer abusar da vossa paciência, porque de resto a teoria chega sempre atrasada (Miguel Tamen), destacaria ainda que rastrear a perda como José Manuel Teixeira da Silva o faz, sobretudo na primeira parte da obra, parece dar razão a teóricos como Omar Calabrese, para quem vivemos uma época «neobarroca».
Depois de sobrevoar a obra do poeta, debruço-me sobre Música de anónimo. Para tanto, defini três pontos coincidentes com as partes do livro.
1.a tudo quanto o dia acenderá
A primeira parte da obra é dominada por algumas isotopias: luz, sombra, mar, verão. A imagem do mar persiste e domina ao longo de toda a obra aliás – o mar compele e inquieta. Tanto o mar como a garota de Ipanema são presenças inelutáveis, embora a garota seja de outra natureza, porquanto passe. Mais até do que olhar o mar ou a garota, o poeta é por eles olhado, tais imagens executam uma incisão, abrindo um espaço para além do visível. Contudo, perseguimos paradoxalmente o que nos segue, como dizem os belíssimos versos do poema «Passos perdidos». De alguma maneira, como afirma o historiador de arte Georges Didi-Huberman em O que vemos, o que nos olha, «ver é sentir que algo nos escapa inelutavelmente», quer dizer, «ver é perder». Olhar para as coisas até que elas se afastem, perdendo-se. Nesse afastamento das imagens averbam-se duas outras perdas: a do tempo – e, mais funda ainda, a perda de si mesmo. Portanto, escreve-se no limiar do fim.
Não satisfaz declarar que o que vemos é apenas a casa ou o mais extenso mar, como sucede no poema «Dar nas vistas», uma vez que o ser humano é animal de sentido. A casa é a casa, o mar é o mar: o consolo da tautologia, para além de nada explicativo, recusa o repto das imagens. Contrasta-se na primeira parte da obra a transitoriedade da beleza da garota com a incandescência pouco humana do mar. «Em chamas», acrescenta um verso do primeiro poema. Este mar de chamas diz por um lado da canícula que se pode experienciar na praia e, por outro, do inferno vivido para lá dela e todavia sentido por quem nela está. Em todo o caso, fala-se de um vapor de estio tão excessivo que aproxima da morte, prosseguindo-se até à aparição da noite como fundo negro para a luz infernal das chamas. Esta incandescência transladar-se-á no segundo poema para o silêncio, uma outra luz por sobre os banhos de sol. Só luz e silêncio e alegria, breve como toda (Vergílio Ferreira), pela repetição de uma estação após outra. «Somos crianças feitas para grandes férias», digo, rememorando Ruy Belo. Pela luz, pelo silêncio e pela alegria o elementar desejo funciona, porém sob ameaça das sombras, da despedida do verão, do tempo que ainda não passou, da antecipação do fim, no que convoco novamente Ruy Belo e a sua demanda pela autêntica estação, consequente do melancólico desajuste. No corpo tatua-se esta passagem do tempo e apesar há dias em que se anda nas nuvens, entusiasmado por dentro do tempo inesgotável. Na ardência dos «extremos lugares» reencontra-se os passos perdidos da garota, desta ou doutra fantasia, porque tudo são «regressos, partidas», imagens que fluem e refluem como o mar. Após a partida das imagens, somos olhados pela perda, pelo vazio que fica, da qual recobramos diferentes quando regressa essa garota, esse verão, esse mar, essa luz, também já eles diferentes. Os regressos e as partidas ensinam-nos a alteridade, pois, essa obsidiante presença do que falha, os jazentes cacos da loiça, as gavetas empenadas, a quietação das águas. Em contraste com esta suspensão temporal, revoam folhas de outro tempo que já não sabemos e desfazem-se as nuvens, claro, só faltavam as nuvens, que visitam amiúde os poemas de José Manuel Teixeira da Silva. Folhas e nuvens passam – como nós passamos, retocando as pegadas no jardim, cortando a relva, limpando alguns caminhos. No poema de Baudelaire de Spleen de Paris, o viajante despreza o mundano e o seu ouro, ignora a família e a pátria – e diz amar somente as nuvens. Somos sujeitos passentos por condição – passamos tempo (e retenho do verbo passar a associação com pathos, sofrimento, autorizada pela etimologia). Passar tempo não consiste contudo nos inanes passatempos, negação inglória da nossa mortalidade. E embora não saibamos o que queiram dizer as palavras aparecer, desaparecer e deslumbrar, saberemos pelo menos que todas as palavras deslumbram, e fazem aparecer e desaparecer.
2.vozes conjugadas na distância
E apesar de tudo, somente as palavras permitem pensar a distância em relação ao mundo e ao outro. A segunda parte de Música de anónimo parece render homenagem às pessoas que o poeta conhece ou conheceu. Encetar um diálogo é de alguma maneira olhar o outro; a leitura – esta, por exemplo – não é outra coisa senão fazer observações. Dialogar e ler são ainda travessias – do olhar, do rosto, das mãos. Mas escrever também, como finalmente veremos na parte final da obra. Centro a minha atenção nos versos do soneto «O quarto dos brinquedos»:
Os meninos seguem na ventania dos quartos
não sabem apenas brincar, como lhes pedem
Onde estamos, ao acordar de coração no breu
que tempo, que vida, que caminho para a mãe?
Uma injunção a que, constato, nenhum menino corresponde – «apenas brincar». Os pais gostariam que eles apenas brincassem, mas momentos de auto-absorção são raros nas crianças. Ao contrário, os meninos seguem, descobrem aos poucos que o caminho para a mãe, para o breu, para a noite da continuidade, não existe. Ou melhor, existirão sempre substitutos do corpo da mãe, de que o soneto dará conta. Imagens, objectos e hipóteses de sentido (Jacques Lacan) – é tudo quanto substituirá o corpo da mãe. Gostariam os pais que eles brincassem, concedendo-lhes o desafogo para, por exemplo, escrever poemas ou esquecer livros. Todavia as crianças são de uma ingénua intransigência quando nos levam para o seu mundo, escrevendo o plot maravilhoso dos dias. Pergunto-me apenas se o poeta não fará o mesmo: no seu quarto, no seu escritório, escrevendo rodeado por todos os livros que colecciona como a criança arrebanha brinquedos, arromba-nos as portas para respirarmos mais fundo.
A pretexto de um livro de Virginia Woolf esquecido numa praia, avançar-se-á por metalepse para uma reflexão sobre todas as leituras que esquecemos. O que sobra na memória das nossas leituras ao fim de algum tempo? E nos nossos gestos, então? Alijamos essa carga algures, soterrada por um dia e outro, tempo sobre tempo ao lado de corpos também eles desabados. Neste ponto parece-me que o livro se debruça sobre o exercício lacunar e elíptico da memória. Cito a segunda estrofe do poema «Sem título»:
Como chamar
o irradiante esquecimento
sem nos afeiçoarmos
a precisas, minuciosas traições
diligente ignorância?
Com que palavras falar do passado, dos amores passados em particular, sobretudo quando a nossa diligente ignorância tratou de o turvar? A nossa memória é pouco fidedigna, assim como o é a mais completa biografia. Acreditamos poder contar a nossa vida – e até a de outros – de uma forma mais ou menos precisa, mas quando decidimos fazê-lo apercebemo-nos de que ela está povoada de zonas de sombra e que foi feita de caminhos não percorridos. O que somos resulta da soma imprecisa do que vivemos mais o que não vivemos. Mas existe uma porta de saída para este impasse: a imaginação, ou, nos termos do mesmo poema, «o empenho das imagens». É disso que trata o terceiro ponto.
3.coisas de atenta surdez
Considero esta «atenta surdez» também a do poeta, e não apenas a de Messiaen. Parece-me uma fórmula justa para dizer da tenacidade que contraria a limitação humana. Como até deus é um problema gramatical (Nietzsche), nada transcende a linguagem, somente interpretamos (como podemos). Do ponto de vista didáctico, nada seria mais estimulante, embora seja difícil contrariar o secular respaldo essencialista. Nos descaminhos da retórica, toda a interpretação tem o seu quê de efabulada. Parece que se concretizou a cultura mundial idealizada por T. S. Eliot em Notas para uma definição da cultura. É a partir desse fundo de latência (disponibilizado em bibliotecas, livrarias, museus, internet, enciclopédias...) que o poeta cria o seu privado museu imaginário (Malraux). Caminha por ele e convida-nos a entrar, não sendo raro que o leitor se transvie nesta sucessão de links, de informação biográfica dos artistas ou de notação estética, tudo cerzido pela imaginação. Lidamos pois com a potência arquivística da nossa era, associada a uma surdez por demais atenta do poeta. O poema converte-se em transdutor de todas as artes. Interpretamos Mahler como interpretamos a loiça jazente, o mundo é concatenação de signos. Diviso nestes poemas finais o recurso à hipotipose, isto é, a sucessivas enumerações enérgicas – uma reacção possível à indizibilidade (Umberto Eco). Lembre-se que na segunda parte do livro a indizibilidade se suspendia em interrogação. Em suma: os poemas da última parte são respostas, influenciadas pela cultura e pela imaginação do poeta, a experiências estéticas. Constituem, de alguma maneira, investigações em verso sobre obras de arte. Nem ver nem ouvir são actividades puramente orgânicas, claro está, e por isso são inquietas. Em consequência, a vida transforma-se numa obra crítica. Tanto da música de Schubert como do resto, constata-se no último poema, «pouco sabemos», o que profliga todo o assomo de optimismo hermenêutico. Em consequência, é tarefa nossa, diz o poema «Os Cadernos de esboços de J. W. Turner», recomeçar o mundo a cada vez.
Pedro Meneses, apresentação na Casa-Museu Teixeira Lopes, em 11 de Abril de 2015
(também em Crueza Bruta)
O QUE DA VIDA NOS OLHA NO OLHAR
José Manuel Teixeira da Silva traça no seu blogue, criado em 2009, o próprio perfil: nasceu no Porto, em Dezembro de 1959; vive em Vila Nova de Gaia, onde é professor; escreve poesia e alguma prosa; faz fotografia. Não é propriamente um curriculum vitae, sendo que o universo da fotografia subsume o todo. Agora, depois de Súbito a Mão (FLUP, 1983); As Súbitas Permanências (Quasi Edições, 2001); Anima, com ilustrações de Ana Abreu (Língua Morta, 2011), O Lugar que Muda o Lugar (Língua Morta, 2013), e Ver. 59 anotações fotográficas (Ed. Autor, 2012), publica Música de Anónimo na açoriana Companhia das Ilhas. Neste novo livro, estranha-se o título, apesar de traduzir – estranhamente - o que nele se passa, isto é, o devir alheio de um ponto focado intensivamente numa imagem ou num quadro montado a partir dele pelo poeta. Prisma tornado linha de mira da cena. Punctum fulminante que adquire um tónus de eternidade.
Pequeno livro, três partes, cada uma encabeçada por uma epígrafe que sumariza o conjunto de poemas aí aglutinados: “a beleza que não é só minha/ que também passa sozinha”, de Vinicius de Moraes; “numa pura suspensão de/ cristais revelo a minha vida”, de Carlos de Oliveira; “Aqui estão flores mudas e vozes apagadas/ ambas vivendo de novo o reencontro”, de Fiama Hasse Pais Brandão. Sublinhem-se, respectivamente, a “beleza” que se impessoaliza, a ideia de “suspensão” e o “reencontro”, visto como reacendimento: temos assim a chave de leitura dos poemas de Música de Anónimo.
Paralelamente, os dispositivos mentais da fotografia, de configurar o campo e de capturar poeticamente uma imagem, marcam esta poesia, assim como a sobreposição e a sucessão de imagens de grande visualidade. Se há um sentido literalmente dominante, será o da visão; se há um instrumento reforçado, será o dos olhos — são consecutivas aparições, textualmente transpostas ao longo de todo o livro. São os olhos que mergulham no mundo, sacando dele um ponto, marcando na hora um tempo único, fulminante, um ponto de partida, que, todavia, ao ser relançado, introduz a sensação de salto para a permanência, de contínuo - a dimensão de tempo e do movimento. Ao levantar-se a cabeça para a extensão do mundo, delineia-se um espaço visual, pictórico. Luz, luminosidade, sombra, olhar - os olhos que olham e que fixam no texto, engendrando espaço - são os alicerces destes poemas. As suas peças: as praias, o fogo, o mar, as ondas, o anoitecer.
Ao primeiro poema, um crepúsculo, um mar de chamas: “os incêndios cercam as praias/ brilhos e olhos mergulhados no mundo// Não sabemos como respirar/ se nadas entre cinzas/ e encandeias os limites do dia// É apenas um mar de chamas/ dizes, enquanto descansas/ nos braços do ar// Ardem nuvens e nuvens e palavras/ na consumida aparição da noite.” A luz e o fogo incendeiam o ar, acendem a vibração poética: ardem nuvens (e nuvens) e ardem palavras. Esta repetição estende a imagem e o verso, num processo recorrente: “de estrela em estrela”; nuvens de nuvens, outras nuvens”; “sombra de sombras de sombras”; “lágrimas que destilam as lágrimas”; “silêncio tombando sobre silencioso silêncio”; “a luz ilumina toda a/ luz, luminosamente”.
Há focagens e desfocagens. Efeitos de movimento. Deformações, reformulações. Este processo cria em simultâneo a expansão (cenário, espaço, horizontalidade) e o aprofundamento (intensidade, tempo, verticalidade) -“um dia inteiro sustenta os olhos/ afunda as figuras que adivinhas/ tanto persistem, sempre mais remotas”-, materializados até na quase ausência de pontuação e no ficar em aberto do verso e/ou do poema.
Olha-se o mundo que nos olha e por esse olhar do mundo fica-se cativado. Fica o poeta suspenso: o seu estado de alma é o da passagem, o viajar da própria viagem, avançando até encontrar um interlocutor, um lugar. Evola-se uma efabulação poética, uma quase narrativa, um ethos particular a partir, por exemplo, da Rapariga do Brinco de Pérola de Vermeer, da sombra de Alma na cabana junto ao lago de Gustav Mahler. O escritor cruza campos artísticos distintos na origem e nos media: da pintura, criam-se pontos de fuga a partir de detalhes em esboços de Turner (“também nos inspira/ a sonâmbula pesca à linha/ quase esquecendo as trutas viscosas”) e de fotografias mais ou menos conhecidas de grandes fotógrafos (de Josef Sudek a Walker Evans). A música, a mais imaterial e mais abstracta das artes, é repetidas vezes convocada como modus operandi ideal caminhando para a invisibilidade, o insubstancial - por exemplo em Música de anónimo do século XVII (cravo de 1758): “Recebe a música de cada vez anónima/ nos dedos que fogem e duram fulminantes/ ou descansam de leve no instrumento etéreo/ que chegou de um século seguinte// A vastidão do dia afina-se no embalo das vidas/ são correntes de um ar que nos transporta/ repercutido silêncio exposto/ mas só agora plenamente alheio”. Também a música é mote ou pretexto para um dos mais belos poemas do livro: Catálogo de Pássaros de O. Messiaen.
Apesar de pouco mediático, José Manuel Teixeira da Silva é um dos poetas mais interessantes da nossa contemporaneidade. Possui um estilo singular, reconhecível; manuseia a língua e as diversas figuras com destreza e elegância até no extremo; transfigura a construção sintáctica mais comum, aproxima elementos antitéticos. Um poeta simultaneamente da atenção (minuciosa) e da imaginação (fulgurante) que urge ser lido.
Maria da Conceição Caleiro, in Ípsilon/Público, 7 de Agosto de 2015
(aqui)