Referir-nos-emos, agora, a um livro que parece ser uma estreia literária. Intitula-se As Súbitas Permanências e é seu autor José Manuel Teixeira da Silva. É um livro breve, mas a sua qualidade é manifesta, representando um amadurecimento plenamente conseguido. Leia-se este poema que se intitula "Roma, cemitério protestante": «Ali fica o lugar dos estrangeiros / o inverso jardim anunciado / pelo sopro dos ciprestes, o baque repetido / das folhas dispostas sobre o musgo / Recolhe-se um murmúrio, o nome / do poeta escrito para sempre pela água / Eis a selva delicada, violetas / lírios violentos, um império dos gatos / Retomam o salto primitivo, soltam uma vida / por entre a tepidez terrífica das asas / Como se afundam donzelas em relvados / todo o tempo para as tranças de pedra / as mãos em abandono sobre os seios / pomos lentamente congelados // Chegaram pelo claro vapor da manhã / vaguearam as tardes estiradas pelas praças / pressentem nocturno o suspiro das fontes / o cerco de colunas derrubadas / sabiamente dispersas pelas colinas // e ali alcançam uma vida atrás da outra / as cúpulas mais distantes da cidade» .
Poemas como este servem-se de uma linguagem imagisticamente exacta, rigorosa. Ela conduz-nos à visão essencial de uma realidade que se anuncia e está presente nos poemas, a qual se manifesta de uma maneira explícita através de referências a lugares (desde Roma ou a Ilha de Malta a Londres ou Porto), a presenças que serão as de Keats, Carlos de Oliveira, Bach, Chopin, Caravaggio, Cláudio Carneyro, etc. A linguagem é extremamente depurada- a neve sobre a neve- e a referência a lugares ou nomes, a que acabamos de aludir, é sempre orientada para a interioridade do próprio poema, como se aí se diluíssem, só para que fosse possível encontrar plenas ausências . As referências, que as há (até porque o poeta chega mesmo a falar de uma bátega súbita do real), convergem para uma outra referência que é a do próprio poema. E este encontra nas coisas, naquilo que descreve, uma imediata memória, um exposto segredo, a profundidade a que chega toda a transparência ...
Fernando Guimarães, in Crónica de Poesia , "Entre a expressão única e as vozes múltiplas", Jornal de Letras, Artes e Ideias, nº 818, 6/2/2002
Paisagem e evocação, no sentido visual e enformativo, enquanto capacidade de fixar epifanias lúdicas, geopoéticas e íntimas, são, a meu ver, as principais referências ou movimentos de ser que caracterizam estes poemas, nos quais o circuito da memória é fundamental: «E depois / eram os meninos do aniki-bobó / no campo longo as / tranças a preto e branco o bolso / do calção dava para a varanda do / rio / entre as ervas da chita o / passarinho totó e a / estrela dos barcos / O comboio, a queda, o túnel, o túnel».
Nesta inter-relação, de espaços prospectivos e de sentimentos vividos, a memória-emoção é sempre passagem, fixação e percurso, para um renascimento contínuo, para os «Voos que de voos se engendrassem / do mais surdo rumor dos dias / velórios sucessivos, a lenha conquistada / tantas outras fugas».
Esta angústia renovada, que advém da fixação de um mundo passado, gerador do tempo presente, se por um lado condiciona ou impele o poeta para o seu abrigo, para o âmago das suas carências, enfim, para o seu circuito de solidão- «esta só minuciosa solidão / no vão breve de espelhos rebatida / o trânsito que vai de face a face»-, de alguma forma lhe vem depois a proporcionar "A Arte da Composição", que é afinal a arte de sobreviver, ou seja: «A estância da harmonia é esta casa dos ventos / o doce mecanismo dos tufões, um nocturno rumor improvisado / Chego-me ao fogo da cozinha, se o frio é assim a pele dos dedos / quando Aurora ilumina a perfeição, digamo-lo, de uma cebola / a aspereza nas pétalas delicadas sob a faca / Persigo os riscos das bátegas, o decisivo curso errático da vida / prelúdios para sempre inacabados, lágrimas apenas verdadeiras».
Ramiro Teixeira, in "Apontamentos da minha estante", suplemento Das Artes, Das Letras, O Primeiro de Janeiro, 20/5/2002
Poemas como este servem-se de uma linguagem imagisticamente exacta, rigorosa. Ela conduz-nos à visão essencial de uma realidade que se anuncia e está presente nos poemas, a qual se manifesta de uma maneira explícita através de referências a lugares (desde Roma ou a Ilha de Malta a Londres ou Porto), a presenças que serão as de Keats, Carlos de Oliveira, Bach, Chopin, Caravaggio, Cláudio Carneyro, etc. A linguagem é extremamente depurada- a neve sobre a neve- e a referência a lugares ou nomes, a que acabamos de aludir, é sempre orientada para a interioridade do próprio poema, como se aí se diluíssem, só para que fosse possível encontrar plenas ausências . As referências, que as há (até porque o poeta chega mesmo a falar de uma bátega súbita do real), convergem para uma outra referência que é a do próprio poema. E este encontra nas coisas, naquilo que descreve, uma imediata memória, um exposto segredo, a profundidade a que chega toda a transparência ...
Fernando Guimarães, in Crónica de Poesia , "Entre a expressão única e as vozes múltiplas", Jornal de Letras, Artes e Ideias, nº 818, 6/2/2002
Paisagem e evocação, no sentido visual e enformativo, enquanto capacidade de fixar epifanias lúdicas, geopoéticas e íntimas, são, a meu ver, as principais referências ou movimentos de ser que caracterizam estes poemas, nos quais o circuito da memória é fundamental: «E depois / eram os meninos do aniki-bobó / no campo longo as / tranças a preto e branco o bolso / do calção dava para a varanda do / rio / entre as ervas da chita o / passarinho totó e a / estrela dos barcos / O comboio, a queda, o túnel, o túnel».
Nesta inter-relação, de espaços prospectivos e de sentimentos vividos, a memória-emoção é sempre passagem, fixação e percurso, para um renascimento contínuo, para os «Voos que de voos se engendrassem / do mais surdo rumor dos dias / velórios sucessivos, a lenha conquistada / tantas outras fugas».
Esta angústia renovada, que advém da fixação de um mundo passado, gerador do tempo presente, se por um lado condiciona ou impele o poeta para o seu abrigo, para o âmago das suas carências, enfim, para o seu circuito de solidão- «esta só minuciosa solidão / no vão breve de espelhos rebatida / o trânsito que vai de face a face»-, de alguma forma lhe vem depois a proporcionar "A Arte da Composição", que é afinal a arte de sobreviver, ou seja: «A estância da harmonia é esta casa dos ventos / o doce mecanismo dos tufões, um nocturno rumor improvisado / Chego-me ao fogo da cozinha, se o frio é assim a pele dos dedos / quando Aurora ilumina a perfeição, digamo-lo, de uma cebola / a aspereza nas pétalas delicadas sob a faca / Persigo os riscos das bátegas, o decisivo curso errático da vida / prelúdios para sempre inacabados, lágrimas apenas verdadeiras».
Ramiro Teixeira, in "Apontamentos da minha estante", suplemento Das Artes, Das Letras, O Primeiro de Janeiro, 20/5/2002